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28 novembro 2022

antónio maria lisboa / recusa

 



 

                                  I
 
É muito possível durante os primeiros meses
uma importante viagem à Asia – essa
é uma das consequências
secretas
em que não se tomaram quaisquer resoluções finais
e ambas chegaram igualmente
 
  
                         II
 
ainda um cu marinho de agonia onde eu
sou um copo de aguardente francesa e tu
uma gaivota que passa rente ao barco que me leva
 
 
                         III
 
          – Eu sou uma coisa qualquer
          eu sou uma qualquer coisa
          sou uma qualquer coisa eu
          uma qualquer coisa eu sou
          qualquer coisa eu sou uma
          coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER
     – eu sou uma cidade
     – eu sou ZANONI de Bulwer Lyton
     – eu sou uma errata
     – onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
     (…)
     – onde está Deus deve-se ver o Diabo
     – onde está o Amor deve estar o Grande Amor Mágico Amor Meu
     – onde estou Eu deves estar Tu
     – onde estão os lábios da nossa vida HÁ uma porta secreta minúscula
 
                                   O-AMOR
                                 MEU AMOR    
 
 
 
antóno maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





21 fevereiro 2021

antónio maria lisboa / rêve oublié

 
 
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
 
Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
 
Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
 
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
 
Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro
 
E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 




19 outubro 2018

antónio maria lisboa / acento




Vem dos montes friíssimos da Noruega
onde te sonhei para beberes estrelas
e caminhar a custo entre as cascatas
onde a ternura é um escadote
e o ar um caracol de planetas nas órbitas.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995












21 novembro 2017

antónio maria lisboa / poema do começo




Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito
aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de
 escamas

Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira
– trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
musgo





antóno maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







03 outubro 2015

antónio maria lisboa / z



As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995


02 março 2015

antónio maria lisboa / projecto de sucessão

  
                    
                                    Para o Mário-Henrique

   
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
Pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma  noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias



antónio maria lisboa
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002




21 outubro 2014

antónio maria lisboa / uma vida esquecida



Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.

Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.




antónio maria lisboa
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985





06 setembro 2014

antónio maria lisboa / o amor de arthur rimbaud o mestre do silêncio




Na montanha onde moram as estrelas
bosques que existem há mil anos
de cabelos negros como o luar e a brisa da tarde
quando entra branda entre as pétalas das flores
que se inclinam sobre o morto que dorme
e misteriosamente repete:

"Sur l'onde calme et noire où dorme les étoiles
Un chant mystérieux tombe des astres d'or"
semi-saído da terra com um olho infinito aberto
morto há um ano ao nascer da lua
morto há um dia ao nascer da rosa
morto há um sonho, morto há um gesto
frente ao sopro das árvores da noite
tocou o seio infante numa primavera
e misteriosamente repete:

"O pâle Ophélia! belle comme la neige!
Ciel! Amour! Liberté! Quel rêve, ô pauvre Folle!"
transparente sobre a terra mole de lava de estrela
sobre cabelos idênticos aos dos mortos desolados
morto há mil anos repete:

"La blanche Ophélia flotte comme un grand lys"

o morto misteriosamente diz:

"Il y a une horloge qui ne sonne pas"



antónio maria lisboa
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




18 julho 2014

antónio maria lisboa / que pensar destes poemas



Que pensar destes poemas: mundo sem classificações,
esquemas, meios diversos e opostos de ser e conhecer,
de se comportar e fazer comportar, de amar e ser amado,
pulverizando as escalas, aparências,
arbitrariedades dialécticas do Bem e do Mal,
da sua reversibilidade, da sua interconexão?

- Porque funde num só corpo:
porque contém a Lei e contém o que destrói a Lei,
é o Paradoxo a forma do Saber Oculto.



antónio maria lisboa
a verticalidade e a chave
contraponto
19..


22 maio 2014

antónio maria lisboa / comutador



Ergo-me de ti no zimbório
de folhas na penedia do castelo medieval
de limos na humidade da praia
de cristais entre os rochedos do Cabo Horn

Caminho de gelo na floresta
de sôfrego na vastidão do deserto
de louco na brancura do hospício

Eu abismo, eu cratera
inclinei-me e vi um espectáculo caprichoso: uma unha branca
uma unha branca a viver assim despreocupada

OGIVA-BORBOLETA
Arco-de-Cor caldo muito triste
Casulo de quem ninguém falou
Teia-de-Aranha exposta à loucura e ao tempo
Andorinha-Azul de chapéu mole e baratas na cama
VENTOINHA.




antónio maria lisboa



11 julho 2013

antónio maria lisboa / varech



Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde

Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros

Eu falo somente dos pés vermelhos

Eu falo... eu falo... eu falo...

No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes

Sim, é verdade, os cabelos loiros

Então, meia-noite!

Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente

A criança é porca, é inútil

Muito obrigado.



antónio maria lisboa
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985


25 outubro 2011

antónio maria lisboa / poema



                                                          Para o Mário Cesariny




Moveu-se o automóvel – mas não devia mover-se
não devia!

Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro

Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam

Pregões de varina sem peixe
- o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe

Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA.






antónio maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




12 julho 2007

poema









antónio maria lisboa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992