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21 abril 2024

carlos poças falcão / sempre dançaram




 
 
Sempre dançaram. Mataram. Ergueram
Pedra sobre pedra o seu desejo, o seu espanto.
Tinham de mudar o curso desses rios
tinham de suar. O sonho em ressaca
varria-lhes a vida. Não paravam.
As palavras eram o mais árduo
ofício de inventar. Julgavam que sabiam
com palavras. Os céus lentamente evoluíam
havia sempre a noite e sempre o dia.
nunca suspeitaram que morriam.
 
 
 
carlos poças falcão
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012



 

22 novembro 2021

carlos poças falcão / sinais

 
 
Porque as palavras servem para um mercado de coisas claras, mas para as questões cegas são elas o próprio selo da cegueira. Que fazer com a experiência da incerteza? Ela é a justa provação – e entretanto os sinais tombam como poeira sobre os campos.
 
 


carlos poças falcão
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012






07 junho 2021

carlos poças falcão / lamenta-te, pois já não é alegre

 
 
Lamenta-te, pois já não é alegre
o vento sobre os campos.
Não há descoberta nem transfiguração
quando o calendário vem com as primícias.
 
Lamenta-te, lamenta-te.
Já não tens a nudez certa
nem a fragrância antiga.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





29 dezembro 2020

carlos poças falcão / preciso de me dedicar inteiramente

 
 
Preciso de me dedicar inteiramente
à arte de inspirar, levando a atmosfera
a todos os alvéolos, secando-os
por oxigenação e aquecimento, perfumando-me
na ventilação. Não importa expirar.
O que é preciso é ter os ossos prontos a erguer-se
e sobretudo (o principal) entrar no fogo
e só arder.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





03 junho 2020

carlos poças falcão / eu vi por dentro a fábrica do inferno



Eu vi por dentro a fábrica do inferno. Agora vejo
o muito que já tive. E o pouco me é tirado.
A voz que me guiava, agora cala-se. Os meus íntimos
estranham-me e afastam-se. E eu mesmo os desconheço.
Meus dias aparecem e assim desaparecem.
A morte dança em festa e a mentira em todo o lado
erige monumentos. Digo o nome do meu Deus
e abismos de palavras o engolfam num tumulto.
Até o coração já me não é um coração
mas um relógio-bomba a detonar no seu reduto.
E a minha voz é fraca e o ouvido duvidoso;
se peço, ninguém ouve; se me chamam, não escuto.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018







05 julho 2019

carlos poças falcão / não sou um indignado



Não sou um indignado. Sei que o mundo passa
bem sem mim – o que é justo e me assinala a grande liberdade.
Procuro manter a dignidade, estou a envelhecer e no entanto
pronto a começar. Afinal está provado o sem sabor de tudo
– a não ser daquilo que começa, do que é inicial,
ou seja, desde sempre. Aí regresso a horas repentinas
muitas vezes entre um desencontro e o café.
Isso é terrível e procuro manter a dignidade.
Foi numa dessas horas que descobre que Deus
não passa bem sem mim – o que não me indigna
e também não me alivia da grande liberdade. Afinal
ser homem para Deus é o sabor inicial.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018






18 janeiro 2019

carlos poças falcão / de onde é que me fala a minha língua




De onde é que me fala a minha língua
senão do esquecimento e da deriva, a língua astuta
que mais e mais se arma e desentende, predadora
que no seu próprio laço se embaraça e fica presa?
De que falamos todos, e de onde, e até quando,
seguindo e discrepando? – frases, forças, mil ciências
que um tempo acumula, outro dissipa, em guerras duras
somando feios mortos a vitórias imprudentes.

  

carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018






20 dezembro 2018

carlos poças falcão / a verdade é um dom silencioso




A verdade é um dom silencioso
move-se ou repousa em regiões não devassadas.
Dá-se a ver por vezes em esfinge
ou nessa liberdade que se ajusta bem ao corpo
abotoando a alma mas deixando solto o espírito
– para não travar o voo
para não negar encontro
para cumprir-se todo no instante de viver.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018








23 agosto 2018

carlos poças falcão / há sempre a laranjeira no quintal




Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. Do caleiro
o marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, liquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar.



carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







07 julho 2018

carlos poças falcão / o vento na varanda




O vento na varanda. Há uma história brusca
em cada verão: surgem as constelações
mais violentas, as cidades arremessam-se para longe.
Por todo o lado: ritmos. Os destinos
emaranham-se nas praças. Passam viaturas
de lugares ocultos, rostos impossíveis. O calor
traz poros venenosos, sopra turvações.
Durante a noite é julho e embate-me no peito
a borboleta escura. Os sinais são abundantes,
agitam-se no céu as luzes dos subúrbios.
Pessoas numa onda de matéria, seus halos
obscuros, o seu pequeno verão que as engana.



carlos poças falcão
sob saturno
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







07 outubro 2017

carlos poças falcão / um dia...




Um dia há um vulgar homem na falésia, um pássaro cantando na varanda, uma simples fissura na parede – e levantamos uma pedra, uma casa. Parecemos ratos se não estivermos atentos, porque é Deus a provocar as evidências, batendo no joelho com a Sua larga mão. “Até que enfim!” – e faculta-nos o dom de um vislumbre e lança-nos depois em novas trevas.



carlos poças falcão
sinais
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







23 novembro 2016

carlos poças falcão / a lamentação



Há uma lamentação nas coisas imperfeitas
como se amassem, como se recordassem.
Tudo pede um deus. E o lamento
é a própria imperfeição. A terra é fulgurante,
macera as criaturas, dá-lhes alimento,
venenos, temperaturas. E sobre os arenitos
depõe restos de chuva, as erosões gravadas
dos apagamentos. A dor deve doer
e os animais agitam-se, movem a cabeça
ao mais leve chamamento. Mas não há chamamento.
Apenas o sussurro de regresso ao horizonte:
um álamo negro, o deus,, a voz humana.



carlos poças falcão
movimento e repouso
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012




04 julho 2016

carlos poças falcão / a diferença



De modo diferente, com estranheza intensa,
a paixão deslumbra-se como uma passagem
sobre as criaturas. Vento em estendais de roupa,
luzes que se acendem nas rotundas, danças nupciais
de insectos nos arbustos – assim se atravessa
a expansão do mundo. Uma atenção não prende
quando se respira com este esplendor. A solidão
sossega-nos: fica-se sagrado por um olhar facílimo
e o pensamento move-se para conhecer estames,
corolas, pares de asas. O amor nada perturba:
toca-se num corpo e não se quebra, desce-se a um nome
e a voz brilha. O tempo oferece-nos presentes.


carlos poças falcão
movimento e repouso
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012



11 abril 2016

carlos poças falcão / dois leões puxam o carro



Dois leões puxam o carro. São de ouro.
Um homem trata da imortalidade. Avança
grandemente sob os raios de um sol
escuro do outro lado. Há vento em tudo isto.
Prepara-se o mármore, ou a negra diorite,ou
entre as mãos a argila toma a forma
dessa face. Rugem os leões iluminados.
Quem irá deter esse guerreiro? Avança
pelo centro dos milénios, o arco retesado
o rosto devastado pelo tempo.


carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012



19 março 2016

carlos poças falcão / passavam mil anos



Passavam mil anos. Seres extraordinários
saíam da terra ou nela penetravam e
desapareciam. Guerras arrasavam
o que se erguia por cima de outras guerras.
E este movimento era imóvel. As pedras
lá estavam, não mentiam, com os astros
as únicas fautoras do silêncio.
Havia qualquer coisa como o vento que erodia.
Mas passavam mil anos. Os povos contavam
pelos dedos. A morte não vinha mais depressa.


carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012




12 maio 2014

carlos poças falcão / «ich habe genug»



1.
o balouçar
da roupa sereníssima
no bairro das traseiras
recorda-me o engano
que ilumina em volta do mundo.
Não saltes tão de força, coração, mas também tu
oscila sereníssimo no tempo que ainda tens
para não desesperar.

2.
E estava-se tão bem

Mas depois abriu
depois fugiu
desapareceu

Depois da tua morte
continua a claridade
a luz faz doer os olhos

E não podendo já
falar ao teu ouvido
nenhum segredo escuto
para dizer ao mundo inteiro

3.
Agora outra vez a caminhar
atraso de propósito o bater dos vários ritmos

Não estou contra
não vou contra
apenas subo um pouco
e desacelero

Assim vou desdobrando
um fio de oração sobre a cidade
Depois dos triunfos
e das pequenas mortes
é só pela humildade (a terra da alegria)
que posso regressar


carlos poças falcão
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013



30 julho 2013

carlos poças falcão / fragmento (narrativa)



                                        ao Laureano, in memoriam


«A democracia manda-nos falar e eu murmuro
excita-nos ao grito e silencio. Depois a tirania
obriga a segredar. Então eu falo.
Impõe-nos o silêncio. É quando grito».
Assim ele ia, nestas lucubrações, em grande perigo
de estranhamento e dor sob o céu baixo
das nuvens suburbanas. «De mim sai o silêncio
como um grito». E caminhava. Nomes bárbaros
de indústrias e comércios seguiam-lhe o andar
são nomes de demónios?, de gigantes?») e as fachadas
irradiavam luzes de obscuros interiores.
Assim ele ia atento, regressando, em grande perigo.

«Não falo a vossa língua, não pertenço a esse código
por todo o lado oculto, o Livro não escrito
de onde saem ordens e discursos criminais».
Assim ia em combate, contrapondo voz humana
a seduções difusas e palavras-talismã.
E entretanto Outono, o fim da tarde. «A inteligência
comove-se a olhar seu próprio tempo». Alteou-se-lhe
de súbito o esterno, um arco tenso
sobre a democracia. «Não seja nunca o sonho
a comandar a vida. Que a voz que em mim compõe
me seja dura». E apressando-se
assim ele ia orando, de regresso, em grande perigo.



carlos poças falcão
telhados de vidro n.º 11
novembro 2008
averno



08 janeiro 2009

carlos poças falcão / os restos







De noite há movimentos para nada procurar:
moeda sobre o tampo numa rotação local,
faces sem saída, cinzas nos cinzeiros.
Vêm habitantes para um esplendor funesto
e a alma fica líquida, dobrada nos sifões,
sob as galerias, por bares subterrâneos.
Há séculos nocturnos em que as moedas giram
assim entre conversas e qualidades mortas.
Nada se procura quando não existe encontro
- e as cidades brilham nas zonas terminais,
às luzes amarelas. É preciso haver um mito
para esmerilar os restos, as areias, os pós de ouro.







carlos poças falcão
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998