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28 fevereiro 2024

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
5.

Sempre que as sombras crescem, esta ferida
abre-se em mim – recordação
de um paraíso inabitável. Sonho,
mas cada sonho deixa atrás de si
a cicatriz de um beijo que adormece
nos meus lábios desertos.
 
Sempre que a lua acorda e espalha
o seu perfume azul neste jardim,
a luz de uma pergunta sobe, agonizante,
pela atmosfera pouco a pouco
mais fria, rarefeita. A minha sede
precisa desse voo,
dessa fé que renasce e procura
beber algum presságio nas estrelas,
florescer na penumbra, acreditar
na memória de Deus
sob o gelo dos olhos que flutuam
de céu em céu, de vida em vida, às vezes
tão perto de um oásis.
 
 
 
fernando pinto do amaral
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




29 novembro 2023

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob

 




 

2
 
Leve cresce uma sombra, a vã glória
de conquistar o inverno – sensação
fulgindo entre a folhagem. Um silêncio
no lusco-fusco, as vozes tão banais
ao longo da ruela. Anoitecida,
regressa a minha alma, o preto-e-branco
dos vultos infelizes retomando
os passos nos passeios, as conversas
que em vento se desfazem. Não importa
descrever a paisagem, ficar preso
a tudo o que nos fala, a este «dia
de inúteis agonias». Aqui estou,
horíssimas à espera, mãos nos bolsos,
como se alguém viesse. Ah, não, pra quê
o enigma de um amor em cada imagem?,
os êxtases da vida?, o choro?, o riso?,
a própria arte? De um ou de outro corpo
me fogem os versos, um incêndio. Tu
serás apenas isso, a tentação
de haver nos dedos chamas, outro céu
a desejar ainda. O que se afasta
do meu olhar são essas poucas luzes,
inanimadas frases prolongando
a silhueta efémera de um rosto
– agora?, há muito tempo? Sem resposta,
estrelas gerando estrelas, um negrume
vivendo-me certezas e receios,
o sabor de um destino ou, simplesmente,
um sonho iluminando-se de lágrimas,
um resto de horizonte nos meus olhos.
 
 
 
fernando pinto do amaral
sete degraus para escada de jacob
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000


16 agosto 2022

fernando pinto do amaral / regressando a casa

 
 
Ninguém quis festejar o dia dos meus anos.
Já estou habituado, é bem melhor
render-me ao sabor quente da penumbra
nesta sala onde cada objecto respira
como se aqui estivesses. As cortinas
continuam corridas e lá fora
julho é um mês vazio, sem destino
para quaisquer palavras – só me fica
um absurda inveja de ser como eles,
jogar os mesmos jogos, rir das mesmas coisas,
mas não há ciência que adiante nada.
 
Pois é, não há ciência capaz de entender
o som do piano que me desenhaste
ali, numa parede, em trompe-l´oeil,
mas não em trompe-l´âme, como tudo
ou quase tudo o que me intoxicou
nestes últimos dias. sofri
outros lugares, outras pessoas; pude
fingir que as almas se substituem
e, no entanto, por alguns momentos
esteve entre as minhas mãos o mundo! Apetecia-me
ter jogado com ele um jogo de bilhar,
enfiá-lo num buraco onde ninguém o visse
e deixá-lo em silêncio, assim como
deixámos esta casa e este bairro
tão degradado, cheio de minorias.
 
A minha minoria sou só eu,
agora que morreste ou ainda pior,
agora que ao meu lado as sombras recomeçam
a abraçar-me às escura, desenhando
na solidão do tecto animais ou plantas,
pequenos barcos pra me conduzirem
a mais um sonho, desses onde a vida
parece ficar presa até ao fim.
 
Ah, como odeio telefones! Só queria
enroscar-me a um canto e dormir,
esquecer-me de quem sou e acordar
no meio de um jardim ou mesmo de um
poema
que ao menos uma vez não falasse da morte.
 
 
 
fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




25 novembro 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
4.
A mão que embala o mundo traz ao colo
a música de frases tenebrosas
a arder na minha boca. A língua fala
de tudo o que não sei: palavras rasas
entre lábios sem alma, que revelam
a natureza morta numa casa
onde a luz fica acesa em cada sala
até de madrugada. Tudo é belo
quando a vida mal vibra e mal nos pesa,
quando o silêncio abre as suas asas
sob o divino hálito que engole
o aroma das rosas.
 
 

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




13 junho 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
3.
Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.
 
 
 
fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




22 março 2021

fernando pinto do amaral / as time goes by

 
 
Fizera uma promessa: ir ao encontro
de uma estranha miragem, mal sabia
porquê – pedia apenas
«qualcosa da bere». Seria ridículo
ensinar truques ao destino, ouvir
a fala de um só deus. Ficava ali
sob o antigo temor da beleza,
sob o poder da noite. Ousadias, receios,
tudo parecia igual.
 
Luminosos golfinhos sorriam,
enfeitavam o cais, esse caos
reflectido nos seus olhos. Sim,
talvez fosse esse rosto a construir
o decorrer do tempo, um sentimento
em música de fundo – esplanadas
ao longo de palmeiras, a caminho
da maior solidão. Em San Remo
há mais de «cinco esquinas» e o Frágil
desaparecera noutro mar, submerso
em «prazer e glória» - «a flight for love
and glory». A Agustina
tem deveras razão, é necessário
o sofrimento. Ainda bem
que as promessas não são para cumprir
e há uma porta aberta sobre a água.
 
 
 
 
fernando pinto do amaral
até chegar o dia
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





16 maio 2020

fernando pinto do amaral / fuga


Não há para o que resta deste mundo
nenhum jardim. O mais distante
paraíso
ficou para trás, cavaleiro
fugindo entre montanhas. Tantas vezes
eu fui a sua sombra, o seu mortal
refúgio.

«Una storia sanguinosa.»
Janela por onde olharemos
a nossa própria história, uma pequena
nuvem de fumo, as últimas conversas
de alguns adolescentes. Deixai-me seguir
os seus passos, transpor essa porta
tão estreita.

Quase todas as noites desejam
entrar aqui. Não saberemos nunca
esgotar a sua dor, os lugares mais perigosos
da vida. Tanto faz
ganharmos ou perdermos – eu só queria
dizer como o teu rosto nesse instante
trazia de outro céu a luz nos olhos.




fernando pinto do amaral
amor hereos
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000






22 dezembro 2019

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob



1.

Saber recomeçar, fugir de novo
outra vez indefeso, vagueando
pelos mesmos lugares, como se neles
houvesse mais que o mundo, uma alegria
imediata, ardendo, ao abandono,
entre casas e ruas vazias. Para quê
voltar a tudo isso? Em cada árvore
ondeia o vento, e o barco dos meus passos
navega sem razão por outros mares.
Há muitos sempres vivo, ainda preso
ao primeiro sabor: o céu de uns olhos
brilhou e vai chamando. Em pouco tempo
Se movem os destinos e eu quis
beber naquela imagem um só fogo,
uma nova ansiedade que deixasse
retida no meu peito a passageira
graça de mais sentidos no deserto
– só assim, afinal, acordaria.
Lava de sonhos, eis que sobe o amor
ou o que vai restar do seu enigma
tão dentro dessa chama-já-promessa:
horas de névoa em doces sobressaltos
rompendo o vão silêncio, desatando
indecifradas músicas? Não sei,
nenhum rosto é igual ao teu rosto, excessivo
gesto da luz, pensando em mim, algures
entre o que vem da noite e o que me abraça
na cega voz da vida, em ti, à espera.



fernando pinto do amaral
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




30 novembro 2019

fernando pinto do amaral / ondas



Outra vez por aqui. Vou sentar-me,
já não espero ninguém, é muito tarde,
sempre foi muito tarde e para mim
é escassa a eternidade. Cada sonho
é o último sonho e o céu
deixou de obedecer aos próprios deuses.

Outra vez o deserto. De que música
cerco ainda os teus olhos? Que mentiras
hei-de ensinar ao corpo e à sua
verdade?

Depois de todas as febres do amor
já nem o amor da própria febre. Apenas
um gesto sem memória e o rumor
das ondas.



fernando pinto do amaral
acédia 1990
dominei
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





07 fevereiro 2019

fernando pinto do amaral / escotomas



2.
Depois da tempestade é mais difícil
continuar fiel ao fogo,
encontrar um refúgio nas cinzas
deste vulcão silencioso. O tempo
devora a minha voz e adormece
todo o amor, todo o medo,
sob o peso de um grito. Não resisto
à luz que se despede
do coração doente – sei apenas
que a verdade se move entre a poeira
de cada corpo, à espera de rezar
uma oração feliz e tenebrosa
no centro da cratera calcinada,
eterno purgatório onde nascem
as cores do meu arco-íris.

  

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






03 novembro 2018

fernando pinto do amaral / 7.




Foi por uma janela que te vi
chegar. A medo, olhámos um para o outro,
cercados de razões que não havia
em nenhuma das horas passadas à espera,
em nenhuma das artes do amor.

Um véu de sons cobria-nos o mundo,
as mesas de madeira envernizada,
a camisola       os olhos muito verdes
o livro dos telefones muito azul.


Quiseste despedir-te logo ali
talvez pra não nos verem. Se pudéssemos
sobreviver ao fogo dos sorrisos,
como se a um segredo confessássemos
mais do que a própria vida! Mas ias descendo
a longa rampa rumo aos repetidos
roteiros do saber. Retomarias
os horários de sempre, esse teu mundo
sem ventos nem marés, fins-de-semana
uns à espera dos outros. Quase tudo
o que tínhamos dito ficava a sonhar
com muitas outras tardes, com a luz
de menos breves horas. «Pode ser
que eu te escreva, que passe contigo
um dia de setembro».



fernando pinto do amaral
os olhos verdes
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000







15 junho 2018

fernando pinto do amaral / escotomas




1.
Uma janela aberta: para lá
do espaço vibra o gelo
e dentro desse gelo vibra o lume
de um súbito segredo cujo sangue
escorre por mim até iluminar
o prazer e a dor
com a mesma certeza. Um relâmpago
liberta e faz pulsar a minha estranha
primeira alma,
essa verdade limpa de memórias,
gravada em milhões de olhos, sempre lá,
no céu da noite, sobre as cintilantes
veias de uma cidade – sobre mim
uma palavra aberta, ainda
antes do tempo,
à flor dos lábios de Deus.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






02 abril 2018

fernando pinto do amaral / anjos




«Hoje é um dia como os outros».
Nunca pude esta frase banal
e porém, talvez não igual às outras
– escrita deixada a meio, descoberta
devorada plo tempo que se evola
à medida que mais se aproxima - «tão perto»
mas agora «tão longe» de ti. Rafaella,
agora que também eu posso ter
isso a que toda a gente chama um nome
próprio: Ralf Rahab, ou melhor, Karl Engel.

Hoje não foi um dia como os outros:
já consigo sentir latejar
o sangue sob a pele,
desenhar o arco-íris, ceder
às tentações do Tempo, que bebe comigo
– ele mesmo, é verdade! –
até de madrugada. Rafaella,
segreda-me ao ouvido qualquer coisa,
não me deixes aqui, assim, perdido,
sujeito a leis que nunca foram minhas,
à tirania estúpida e universal
dos pequenos rectângulos  de papel
onde sorri tranquila a Clara Schumann.

Amanhã não será um dia como os outros:
irei salvar de novo uma criança
e depois, Rafaella, nos teus braços
voltarei a escutar, ainda mais pura,
a voz silenciosa da eternidade.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997







26 janeiro 2018

fernando pinto do amaral / quinze rosas mais tarde



                            Sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

                                                                             Paul Celan


Murcharam por engano as rosas onde agora
vive outra vez o teu amor por mim:
respiro o que restou do teu aroma
ainda tão recente e, no entanto,
a dissipar-se, como o do teu corpo,
colado à minha pele, contaminando-a
com um rastro de alegria em cada poro
aberto a uma certeza que não é,
nunca foi deste mundo, que se eleva
no gelo de fevereiro, pelas frinchas
de portas e janelas, toda a noite.

Queria saber amar-te como aos vinte anos
se ama a escuridão iluminada
dos corpos e das almas, essa névoa
soberana e feliz, mas só me ocorre
pedir solenemente a um deus infantil
que apague num só gesto as nossas vidas
ao longo desses tempos irreais
em que as lágrimas tinham outra fé
na dor irracional que abria ao meio
os nossos corações, ameaçando
deixá-los para sempre à mercê de si próprios.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997





23 novembro 2017

fernando pinto do amaral / uma herança




Foi plo retrovisor que te vi. Mal entraste
naquele banco de trás
tinha mudado a minha vida. O mundo
parecia pertencer-te enquanto me fugia:
horas e horas atrás de um volante,
o olhar embaciado, os fumos desse verão,
tudo se ia afastando, misturado
com a névoa das insónias e, porém,
retendo aquele pedido, a tua voz
tão forrada de lágrimas.

Toda a minha vida era um poço de sangue
quase a explodir à luz do lusco-fusco – um sonho
a convidar-me, a desejar ser escrito
no meu diário íntimo.

Não me satisfizera o teu quartinho kitsch
e um dia combinámos um pequeno-almoço,
mas eu sabia apenas seguir-te à distância
de esquina em esquina, como se os teus passos
fossem deitando fogo a todas as memórias,
ao próprio coração. Preso àquelas semanas,
imaginei uma saída,
um acto redentor, um gesto heróico: um tiro
solitário? Alguém,
era preciso alguém que herdasse aquele amor,
que empunhasse uma arma e disparasse
anos e anos mais tarde – estes versos
são rajadas de balas a atingir-nos.



fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





12 outubro 2017

fernando pinto do amaral / avisos



Teria amado o vento e a fala dos bosques,
as imagens da noite, os pequenos avisos
do coração. Iria regressar
por outros olhos às cores do inverno.



fernando pinto do amaral
acédia 1990
dominei
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000








29 agosto 2017

fernando pinto do amaral / saudação



“Já não escuto o que dizes, voltarei
para junto do lago: o meu anjo
virá por não sei onde, irá trazer-me
os felizes recados de Deus.

‘Que a alma seja corpo’, e que este corpo
lhe saiba responder ao mais brilhante
sorriso. À luz da lua,
poisada no meu ventre, a sua mão.”


fernando pinto do amaral
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990