06 setembro 2017

rené char / folhas de hipno




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Há pessoas razoáveis que, quando o seu instinto de preservação soçobra sob as exigências do instinto de propriedade, chegam a perder a noção da provável duração da sua vida e do seu equilíbrio quotidiano. Tornam-se hostis aos estremecimentos da atmosfera e submetem-se sem reservas às instâncias da mentira e do mal. É sob uma magnífica saraivada de granizo que em pó se desfaz a sua miserável condição.

         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000





05 setembro 2017

ana hatherly / 463 tisanas



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Nesse dia lera um artigo em que se falava a evolução das artes e se concluía que nada nos restava já fazer uma vez que tudo estava feito e nada poderíamos acrescentar. Fiquei a pensar seriamente no assunto durante um certo tempo. Até que finalmente compreendi. Dirigi-me para o meu escritório sentei-me à secretária tirei da gaveta uma folha de papel e comecei a escrever um longo telefonema. Praticando mais uma vez aquilo a que chamo a prova de resistência dos materiais poéticos chamei o meu porco Rosalina e pedi-lhe que o lesse e depois mo enviasse pelo correio.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006




04 setembro 2017

paul éluard / a aurora dissolve os monstros



Ignoravam
que a beleza do homem é maior do que o homem

Viviam para pensar pensavam para se calarem
Viviam para morrer eram inúteis
Ocultavam a sua inocência na morte

Tinham posto em ordem
sob o nome de riqueza
sua miséria bem-amada

Mastigavam flores e sorrisos
Só encontravam um coração na ponta das carabinas

Não percebiam a injúria dos pobres
Dos pobres amanhã sem problemas

Sonhos sem sol tornavam-nos eternos
Mas para que a nuvem de transformasse em lama
Desciam deixavam de fazer frente ao céu

A noite do seu reino a sua morte a sua bela
                                                           [sombra miséria
Miséria para os outros

Esqueceremos estes inimigos indiferentes
Em breve uma multidão
Repetirá baixinho a chama clara
A chama para nós dois unicamente paciência
Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977





03 setembro 2017

bernardo soares / a doçura de não ter família nem companhia



A doçura de não ter família nem companhia, esse suave gosto como o do exílio, em que sentimos o orgulho do desterro esbater-nos em volúpia incerta a vaga inquietação de estar longe — tudo isto eu gozo a meu modo, indiferentemente. Porque um dos detalhes característicos da minha atitude espiritual é que a atenção não deve ser cultivada exageradamente, e mesmo o sonho deve ser olhado alto, com uma consciência aristocrática de o estar fazendo existir. Dar demasiada importância ao sonho seria dar demasiada importância, afinal, a uma coisa que se separou de nós próprios, que se ergueu, conforme pôde, em realidade, e que, por isso, perdeu o direito absoluto à nossa delicadeza para com ela.

As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.

O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que pena! Tenho saudades deles, porque, como os outros, passam...

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






02 setembro 2017

pedro tamen / manhã no louvre



1. O escriba acocorado

Ele que escreve que não saibamos já,
olhos fitos no nada que por ciência tem?
Sob os ardores do sol burila só silêncio
que sustenta no colo
e onde cabe tudo.


2. Vénus de Milo

Tisnada pelos tempos, com braços largou
com que agarrasse a norma
e o calendário sábio:
nem mais nem menos que outras,
teve a sorte que o século
dispensa aos muitilados.


3. Vitória de Samotrácia

Ideia pura, impura, do sobre o mar vencido,
ei-la que nada é, sequer a glória,
senão escultura, pedra,
e, mais, dispersa
nessa mão intrigada e lacunar
que nada diz nem voa.


4. Gioconda

Agora sei, enfim, porque sorri:
tantos papalvos, céus, em busca da memória
que a pintura não dá.

 Maio, 1989



pedro tamen
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990





01 setembro 2017

armando silva carvalho / pastos




Por caminhos de verão alguém me pastoreia
patos celestes, gansos azuis de esperança,
inúmeros animais a que arderam as penas.
A fala é uma correia que estala sobre os corpos
o grito uma granada de alcance inofensivo.
Silêncio sou no solo, no chão deste país
de mães vivas e soltas os cabelos desgrenhados
pelos negócios da alma que são os mais difíceis,
pela alma dos negócios a que ninguém me poupa.
É tempo? Pois é tempo.
As luzes incendeiam as pastagens do medo
e as frutas do silêncio
esperam nos meus silos os dentes da revolta.


armando silva carvalho
técnicas de engate 1979
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007





31 agosto 2017

álvaro feijó / funâmbulo



A miséria é tão grande do meu lado
que me apetece ir combater
do lado dos inimigos.

Em espírito, passei.
                                  Chego, vaiado
pelo povo e ao som
das fanfarras explosivas dos mandantes.

E torno a ver
aquilo que dantes
vira, aumentado, talvez, milhões de vezes.

Oh! Morrer por morrer…


Eu sinto
que vale mais morrer do outro lado,
onde se morre mais limpo!



álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961







30 agosto 2017

josé carlos ary dos santos / retrato de rimbaud



Pois comigo na cama é que eu te queria
morder-te os sons visíveis e perversos
e enforcado nos cornos da poesia
esfregar-me nas imagens e nos versos.

Pois comigo na cama é que eu te queria
arco-íris de letras flor de gritos
dançando até ao espasmo da alegria
o apaixonado baile dos malditos.

Pois comigo na cama é que eu te queria
iluminado pelo cio aberto
da bala que se vê não se vigia
parece longe e entanto está tão parto.



ary dos santos
vinte anos de poesia
fotografias, 1970
círculo de leitores
1983






29 agosto 2017

fernando pinto do amaral / saudação



“Já não escuto o que dizes, voltarei
para junto do lago: o meu anjo
virá por não sei onde, irá trazer-me
os felizes recados de Deus.

‘Que a alma seja corpo’, e que este corpo
lhe saiba responder ao mais brilhante
sorriso. À luz da lua,
poisada no meu ventre, a sua mão.”


fernando pinto do amaral
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990




28 agosto 2017

abelardo linares / no alto



Junto ao mar. Às costas do velho molhe, cheira
a peixe  alcatrão, a sós, na noite
sem candeeiros nem luzes, com uma camisola fina
e a aragem no rosto, enquanto se ouve ao longe
música de arraial e o bater  das ondas,
a minha lembrança procura-te e ergue-te e segura-te
para olhar para ti tal como então olhava,
por cima de tudo o que passa e sucumbe.
No alto  mais fundo, onde permaneces ainda.



abelardo linares
trípticos espanhóis 1º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998



27 agosto 2017

alberto caeiro / li hoje quase duas páginas



XXVIII

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




26 agosto 2017

fiama hasse pais brandão / na terra dói



Na Terra dói
partilhar a curta eternidade,
e só no Eterno ignoto
o tempo é todo teu,
para poderes estar só.




fiama hasse pais brandão
entre os âmagos (1983-1987)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





25 agosto 2017

jorge de sena / fidelidade




Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.



jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972