29 novembro 2017

ángél gonzález / dia de anos




Noto isto: estou a ficar
menos certo, confuso,
dissolvendo-me no ar
quotidiano, tosco
girão de mim, desfiado
e roto pelos punhos.

Compreendo: vivi
um ano mais, e isso é bem duro.
Mover o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Para viver um ano é necessário
muitas vezes morrer muito.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985






28 novembro 2017

jorge luís borges / beppo






O gato branco e solitário vê-se
nessa lúcida lua de algum espelho
e não pode saber que tal brancura
e esses nunca vistos olhos de ouro
são, afinal, a sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é apenas um sonho desse espelho?
Eu penso que esses gatos harmoniosos,
o do mais quente sangue e o de vidro,
são simulacros que concede ao tempo
um arquétipo eterno. Assim afirma,
sombra também, Plotino nas Enéadas.
De que Adão anterior ao paraíso
E de que divindade indecifrável
somos nós, homens, um quebrado espelho?


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998









27 novembro 2017

manuel antónio pina / teoria das cordas




Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.




manuel antónio pina
atropelamento e fuga (2001)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





26 novembro 2017

alberto caeiro / da mais alta janela da minha casa


XLVIII

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos





25 novembro 2017

luís veiga leitão / ao visitante



Entrego-te as chaves da cidade
A chave da torre que do alto nos abre
O voo das aves e os pórticos do mar
A chave das muralhas do burgo antigo
Que nos abre aos mistérios do rio
A chave viva dos arcos da ribeira
Na livre explosão das falas do povo
E a chave de cais, senhora zelando
Os tesouros do sol no ouro do vinho




luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012





24 novembro 2017

carlos de oliveira / quando a harmonia chega




Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.

Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente que desperta no rumor das casas, forças surgindo da terra inesgotável, crianças que passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e irrevogável, a humanidade está na rua.

E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao encontro da luz, parece de repente uma ave de fogo.



carlos de oliveira
terra de harmonia
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998





23 novembro 2017

fernando pinto do amaral / uma herança




Foi plo retrovisor que te vi. Mal entraste
naquele banco de trás
tinha mudado a minha vida. O mundo
parecia pertencer-te enquanto me fugia:
horas e horas atrás de um volante,
o olhar embaciado, os fumos desse verão,
tudo se ia afastando, misturado
com a névoa das insónias e, porém,
retendo aquele pedido, a tua voz
tão forrada de lágrimas.

Toda a minha vida era um poço de sangue
quase a explodir à luz do lusco-fusco – um sonho
a convidar-me, a desejar ser escrito
no meu diário íntimo.

Não me satisfizera o teu quartinho kitsch
e um dia combinámos um pequeno-almoço,
mas eu sabia apenas seguir-te à distância
de esquina em esquina, como se os teus passos
fossem deitando fogo a todas as memórias,
ao próprio coração. Preso àquelas semanas,
imaginei uma saída,
um acto redentor, um gesto heróico: um tiro
solitário? Alguém,
era preciso alguém que herdasse aquele amor,
que empunhasse uma arma e disparasse
anos e anos mais tarde – estes versos
são rajadas de balas a atingir-nos.



fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





22 novembro 2017

sohrâb sepehry / um oásis no momento





se vieres à minha procura
estou atrás do lugar que não existe
atrás do lugar que não existe há um lugar
atrás do lugar que não existe
são as veias do ar cheias de mensageiros
que trazem notícias da mais longínqua florida flor da terra
na face da areia estão traçadas as marcas do cavalo de um cavaleiro
                gracioso
que de manhã subiu ao cimo da montanha da Ascensão
atrás do lugar que não existe está aberto o leque dos desejos
tocam as campainhas de chuva para que a brisa sequiosa possa che-
                gar ao cimo
de uma folha das campainhas de chuva que tocam
aqui o homem está só
e nesta solidão a sombra de um ulmeiro flui para a eternidade
se vieres à minha procura
vem devagar e suavemente para não quebrar a porcelana da minha
                solidão.




sohrâb sepehry
tradução de halima naimova
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







21 novembro 2017

antónio maria lisboa / poema do começo




Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito
aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de
 escamas

Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira
– trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
musgo





antóno maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







20 novembro 2017

mário-henrique leiria / eu sei



eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins


o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só o vento
soprado através dos
teus cabelos




mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998






19 novembro 2017

bernardo soares / absurdo





Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é (o) divino.

Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam — talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo.

Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







18 novembro 2017

mário cesariny / rua do ouro




Ai dele que tanto lutou e afinal
está tão só. Tão sòzinho. Chora.
Direcção da Companhia Tantos de Tal.
Cincoenta e três anos. Chove, lá fora.

Chora, porquê? Ora, chora.
Uma crise de nervos, coisa passageira.
É, talvez, pela mulher que o adora?
(A êle ou à carteira?)

Seis horas. Foi-se o pessoal.
O homem que venceu está sòzinho.
Mas reage: que diabo. Afinal...
E olha para o cofre cheínho.

Sim estou só ainda bem porque não? ele diz
batendo com os punhos na mesa.
Lutei e venci. Sou feliz
E bate com os punhos na mesa.

Seis e meia. Ó neurastenia
o homem que venceu está de borco
e sente uma grande agonia
que afinal é da carne de porco
que comeu no outro dia.

É da carne de porco ele diz
vendo a chuva que cai num saguão.
É da carne de porco. Sou feliz.
E ampara a cabeça com as mãos.

Durante toda a vida explorou o semelhante.
Por causa dele arruinaram-se uns cem.
Agora, tem medo. E o farsante
diz que é feliz diz que está muito bem.

Sim, reage. Que diabo. Terei medo?
E vê as horas no relógio vizinho.
Mas, ai, não é tarde nem cedo.
Ele, que venceu, está sòzinho.

Venceu quem? Venceu o quê? Venceu os outros
Os outros, os que o queriam vencer!
Arruinou-os, matou-os aos poucos.
Então não o queriam lá ver?

Sim, reage: Esta noite a Leonor
amanhã de manhã o Sàlemos
e depois? Ah o novo motor
veremos veremos veremos

Mas pouco do que diz tem sentido.
Tudo hoje lhe é vago uniforme miudinho.
O homem que venceu está vencido.
O dinheiro tapou-lhe o caminho.

Os filhos? esperam que êle morra.
A mulher? espera que êle morra.
O sócio? Pede a Deus que êle morra!
Só a Anita não quer que êle morra!

Ai, maldita carne, murmura
vendo a água que há no saguão.
Tinha demasiada gordura!
E veste o casaco e o gabão.

Passa os olhos pelo lenço. Acabou-se.
Vai sair. Talvez vá jantar?
É inverno. Lá fora, faz frio.

O homem que venceu matou-se
na margem mais escura do rio
ao volante dum belo Packard



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991






17 novembro 2017

pedro oom / as virtudes dialogais



Dentro
de mim
há uma planta
que cresce
alegremente
que diz
bom dia
quando nos amamos
ao entardecer
e boa noite
quando florimos
à alvorada
uma árvore
que não está com o tempo
este tempo
a que chamamos
nosso.


pedro oom
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998